De cortadores de cana à músicos renomados: o sentido da vida para Nelson da Rabeca e sua esposa Benedita

“Hoje é gente rica, é gente pobre, é gente tudo que me abraça", diz Nelson
“Hoje é gente rica, é gente pobre, é gente tudo que me abraça”, diz Nelson

Há alguns anos, eu tinha um namorado que costumava dizer que ser cortador de cana-de-açúcar era o pior ofício que existe nesta vida. Toda vez que eu lamentava de alguma situação relacionada ao trabalho, ele dizia algo como “pare de reclamar, já pensou que tem gente que é cortador de cana?” Ele argumentava que esses trabalhadores têm uma vida sofrida, passam o dia todo encurvados com a enxada na mão, embaixo de sol forte, sem direito a descanso.

Essa constante argumentação dele me marcou muito. Desde então, é com pesar que eu imagino a vida no canavial. Sempre que ouço falar de cortadores de cana vem à minha mente o conceito: “é a pior profissão desta vida.”

Por morar na cidade, contudo, eu nunca havia tido a oportunidade de conversar com um desses agricultores para saber quão dura é a realidade na colheita de cana-de-açúcar.

Eu digo “não havia tido” porque, num dia desses, a hora chegou. E foi no lugar mais inesperado possível.

Eu estava com um amigo no Centro Cultural São Paulo quando notamos que acontecia um show gratuito em um dos palcos abertos. Era uma agradável apresentação de improviso que incluía rabequeiros (eu apendi naquele dia o que é uma rabeca, uma espécie de violino popular), uma clarinetista e um percussionista.

Sentamos para assistir. Logo percebemos que um casal no meio do palco se destacava durante a apresentação. De chapéu na cabeça e corpo encurvado, um senhor tocava rabeca ao lado da cantora, uma simpática senhora de vestido florido, cabelos longos e pele morena. Ela cantava as músicas com um sotaque nordestino que fazia a gente ficar prestando atenção atentamente para conseguir entender o que a letra queria dizer.

Dei uma “googleada” no meio do show e descobri que se tratavam do alagoano Nelson dos Santos, conhecido como “Nelson da Rabeca”, e sua esposa, Dona Benedita. A primeira reportagem que aparecia tinha no título: “Agricultor alagoano deixa o corte de cana para se dedicar à música.”

O show foi divertidíssimo. Os improvisos envolviam Nelson de tal forma que ele não conseguia parar de tocar nem quando a música acabava – várias vezes Dona Benedita o cutucava durante a apresentação para sinalizar que era hora de parar.

Rabequeiro aos 54 anos

Ao final do espetáculo, não resisti a curiosidade e fui lá conversar com o simpático casal. Nelson, que está para completar 75 anos, disse que foi somente aos 54 que conheceu a rabeca, após assistir televisão. “Deus e me ‘aliminou’ que eu vi uma pessoa tocando violino, eu achei muito bonito.”

Sem saber escrever sequer o próprio nome, Nelson, que tinha sido cortador de cana a vida inteira, começou a pesquisar e a fazer testes com madeira para reproduzir o som do violino. Ele conheceu a rabeca em seguida, aprendeu a fabricar o instrumento e a tocar. De lá para cá, aprimorou-se de certa forma que é conhecido no meio musical como um dos principais rabequeiros do país.

Ele e Dona Benedita, 70 anos, já viajaram pelo mundo para se apresentar e é com muito orgulho que contam sua história. “Hoje até fora do Brasil ele é conhecido. Gracas a Deus na semana passada fomos para a Noruega, para a África, e vivemos felizes. É muito bom o que a música trouxe para a gente. Deus primeiramente, mas a música botou a gente no mundo e a gente é feliz”, afirmou Benedita.

Nelson fez questão de frisar que “não ficou rico, não”, mas tem a liberdade de criar e fazer o que gosta. “Hoje é gente rica, é gente pobre, é gente tudo que me abraça. Eu nunca tive estudo, mas essa rabeca fui eu que criei e as músicas fui eu que fiz”, declarou.

Vida na roça

Nelson e Benedita se conheceram na roça e tiveram dez filhos, sendo que um deles morreu. Hoje são 23 netos e três bisnetos.

Para construir essa família toda, tiveram que batalhar muito. “Vish, Maria, menina! Não quero nem me lembrar daquele tempo passado”, desabafou Benedita. “Eu trabalhava na cana, eu ‘cavava’ cana, semeava cana, limpava a máquina… Eu tenho até uma música de quando eu comecei a trabalhar na cana. É uma vida cruel, trabalha e não tem nada. A vida da gente hoje é boa, a arte da música é uma vida maravilhosa”, disse.

Nelson revelou que gostava de música desde menino, mas não teve a oportunidade de aprender a tocar um instrumento antes. “Os pais de antigamente era pessoa muito sem entender as coisas, eu tinha vontade de tocar, meu pai não deixava eu tocar, ficava trabalhando no canavial e na roça.”

Sentido da vida

Depois de conhecer a história de Nelson, eu até tentei tirar dele uma resposta para o sentido da vida, mas o rabequeiro desconversava e voltava a falar do quanto gosta da rabeca. Aliás, ele é luthier: fabrica e vende o instrumento. “A vida? A minha vida graças a Deus melhorou muito, uma pessoa como vocês me valoriza muito, eu me sinto muito satisfeito”, disse.

Coube à Dona Benedita a dar uma resposta mais concreta: “Olha, o sentido da vida é Deus dar a força e talento a gente para gente viver e batalhar o pão de cada dia, o sentido da vida é isso.”

E foi assim que eu conheci a história daqueles que tinham “a pior profissão do mundo” e hoje, ao meu ver, trabalham com uma das melhores delas. Afinal, ser músico profissional é o sonho de muita gente, não?

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