Em tratamento contra um câncer, minha amiga Érika (pra quem conhece, a ‘Tia’) respondeu o sentido da vida: ‘evoluir, crescer, aprender’

A Érika
“Para mim o sentido da vida é evoluir,‭ ‬usar todas essas ferramentas que a gente tem,‭ ‬de sentimentos,‭ ‬tudo,‭ ‬para aprender,‭ ‬para crescer”, diz Érika

Foi pelo Facebook que eu fiquei sabendo que a‭ “‬Tia‭”‬,‭ ‬apelido carinhoso que demos para a Érika Ramos na época da faculdade,‭ ‬por ser a mais velha da sala,‭ ‬estava em tratamento contra um câncer.‭ ‬Ela mesma fez o post na rede social,‭ ‬numa espécie de‭ “‬boletim médico‭”‬,‭ ‬para tentar diminuir a quantidade de contatos por notícias que recebia o tempo todo.

‭“‬É que a minha vida ficou um inferno,‭ ‬Gabi,‭ ‬um inferno.‭ ‬Era gente ligando de dia,‭ ‬de tarde e à noite.‭ ‬Eu tenho parente que mora longe,‭ ‬amigos,‭ ‬um monte de gente me chamando em todas as mídias que você possa imaginar.‭ ‬Me chamavam pelo alçapão do banheiro [risos].‭ ‬Eu‭ ‬não tinha vida,‭ ‬não aguentava mais,‭ ‬só falava de doença.‭”

Quem conhece a Tia sabe que o jeitão dela é assim mesmo.‭ ‬Espontânea,‭ ‬brincalhona.‭ ‬Curta e grossa.‭ ‬Ela disse que a necessidade de ter sossego era tão grande que compensava o ônus da exposição‭ ‬-‭ ‬de todo mundo ficar sabendo que ela estava doente.‭

Depois do post no Face,‭ ‬onde ela pedia para as pessoas não ficarem preocupadas,‭ ‬porque ela estava se cuidando,‭ ‬a quantidade de contatos diminuiu e a Tia disse que se sentiu melhor,‭ ‬com mais tempo livre.‭ ‬Além disso,‭ ‬contou que foi criada uma espécie de corrente do bem para a sua recuperação.‭

“Tem gente rezando para mim em tanto lugar.‭ ‬As pessoas comentam‭ ‬‘olha,‭ ‬a minha avó te mandou um beijo,‭ ‬sabe‭?‬’ Tem um monte de vó rezando,‭ ‬isso é muito querido.‭ ‬É porque‭ ‬eu sou chata e reclamona,‭ ‬tenho que reclamar de tudo.‭ ‬Então até‭ ‬de mandarem eu ter força eu reclamo,‭ ‬mas é muito fofo.‭ ‬As pessoas se comovem e ficam torcendo para você.‭ ‬Isso aí superou qualquer coisa ruim da exposição.‭”

Depoimento
E foi graças a essa coragem – que ela insiste em dizer que não foi coragem, mas necessidade – que ela teve de tornar a doença pública que eu resolvi perguntar se ela aceitava falar sobre o sentido da vida para o blog.‭ ‬

E a sobrinha aqui (como ela, também carinhosamente, nos chamava) agradece desde já por a Tia ter aceitado dividir um pedaço de sua história com a gente. Talvez o fato de ela já me conhecer tenha colaborado para a sinceridade no depoimento, o que o torna, ao meu ver, especial.

A Érika está hoje com‭ ‬38‭ ‬anos.‭ ‬Estudou jornalismo comigo na Universidade Metodista de São Paulo.‭ ‬Ela já tinha feito outra faculdade antes,‭ ‬de‭ ‬Tecnologia em‭ ‬Processamento de Dados,‭ ‬na Unicastelo,‭ ‬e‭ ‬cerca de dez anos depois‭ ‬colocou na cabeça que queria ser jornalista e aos‭ ‬28‭ ‬anos ingressou no novo curso.

Após‭ ‬a‭ ‬nossa formatura,‭ ‬em‭ ‬2007,‭ ‬tive pouco contato com ela.‭ ‬Cada uma seguiu a sua vida.‭ ‬Na última vez que conversamos ela estava deixando a redação do extinto‭ “‬Jornal da Tarde‭”‬,‭ ‬justamente quando o periódico fechou,‭ ‬no final de‭ ‬2012.‭

‬Ela foi para os Estados Unidos estudar inglês.‭ ‬Ao voltar,‭ ‬no final‭ ‬de‭ ‬2013,‭ ‬resolveu procurar um médico por causa de um mioma no útero que tratava há anos e estava crescendo.

A 'sobrinha' aqui agradece a Tia por ter aceitado dividir a história com a gente
A ‘sobrinha’ aqui agradece a Tia por ter aceitado dividir a história com a gente

O caso era grave,‭ ‬os médicos recomendaram uma cirurgia de emergência para a retirada do útero.‭ ‬Dali para a descoberta de um câncer raro foram‭ ‬15‭ ‬dias.‭ ‬O diagnóstico foi de‭ “‬leiomiossarcoma‭”‬,‭ ‬que ela explicou ser um tumor raro de músculo liso na região do útero.

O processo,‭ ‬desde que soube do câncer,‭ ‬inclui outra‭ ‬cirurgia de emergência‭ (‬um novo tumor‭ ‬surgiu próximo‭ ‬da bexiga‭)‬,‭ ‬sessões de radioterapia,‭ ‬internação por causa de uma infecção,‭ ‬quimioterapia e todo o sofrimento que sabemos‭ ‬em consequência do tratamento.

‬Ela cita muita fraqueza,‭ ‬cansaço e‭ ‬falta de energia‭ ‬por causa da quimioterapia.‭ “‬O cansaço é absurdo, que eu nunca senti,‭ ‬cara,‭ ‬é um piano na sua cabeça.‭”

Sem contar a queda de cabelo.‭ ‬Ela lembra de um episódio antes de‭ ‬iniciar a quimioterapia,‭ ‬onde se pegou na frente do espelho,‭ ‬colocando um lenço na cabeça e escondendo as madeixas.‭ “‬Eu chorei umas duas horas lá.‭ ‬Chorei,‭ ‬chorei,‭ ‬chorei.‭ ‬Fiquei triste para caramba e depois falei,‭ ‬‘tá,‭ ‬se for só isso vamos lá‭’‬.‭”‬ Quando o‭ ‬cabelo caiu de verdade,‭ ‬o‭ “‬luto‭”‬ já tinha ocorrido,‭ ‬ela‭ ‬criou coragem,‭ ‬cortou curto e depois raspou, contou.

Aceitação
Receber o diagnóstico de câncer foi chocante,‭ ‬conta.‭ “‬É um impacto.‭ ‬Fui eu e minha mãe.‭ ‬Mas a médica não me botou medo,‭ ‬disse‭ ‬‘ah,‭ ‬mas você vai se tratar‭’‬.‭ ‬Aí a gente sai do consultório e o que vai fazer‭? ‬Buscar no Google o que é a doença.‭ ‬E você fala‭ ‬‘meu,‭ ‬fodeu‭’‬‭”

Ela diz que primeiro vem uma negação da doença.‭ “‬Demora até você entender o que está acontecendo,‭ ‬você fica com medo,‭ ‬com raiva.‭ ‬Tem sentimentos controversos.‭ ‬Fala,‭ ‬‘puta merda,‭ ‬e agora,‭ ‬o que é que vai ser‭’‬? Questiona.‭ ‬Porque a única certeza que todo mundo tem desde que nasce é que vai morrer,‭ ‬mas quando é uma doença‭‭ ‬difícil…‭ ‬Ah,‭ ‬nem sei quanto tempo eu demorei para aceitar,‭ ‬mas fui vivendo cada fase,‭ ‬entendendo o que tinha que ser feito.‭”

‘Além da doença,‭ ‬ainda‭ ‬tem você‭’‬
Uma das principais dificuldades,‭ ‬conta,‭ ‬é lidar com a própria personalidade.‭ “‬Fora a gente estar doente,‭ ‬ter que se tratar,‭ ‬entregar corpo e veias para o negócio,‭ ‬porque haja corpo,‭ ‬veias e nervos,‭ ‬a sua vida continua.‭ ‬Você‭ ‬segue sendo a mesma pessoa.‭ ‬Continua tendo alguns dos mesmos problemas.‭ ‬As mesmas neuroses,‭ ‬as mesmas loucuras,‭ ‬as mesmas coisas.‭ ‬Então,‭ ‬além da doença,‭ ‬ainda‭ ‬tem você.‭”

Érika revela que sempre foi muito estressada,‭ ‬impaciente,‭ ‬um pouco intolerante.‭ “‬Não fugimos da gente,‭ ‬temos uma essência e ninguém vai mudar da noite para o dia.‭ ‬Pode acontecer o que for,‭ ‬eu não vou virar a Madre Teresa de Calcutá amanhã.‭ ‬Não vou ficar dócil,‭ ‬bem boazinha porque eu estou doente.‭ ‬(…)‭ ‬Vou tentar melhorar,‭ ‬mas a gente segue sendo a gente.‭”

É claro que ela disse que passou a ficar mais atenta sobre como lidava com determinadas situações. “Você percebe as coisas que você vinha fazendo.‭” Cita comportamentos que podem não ter causado a doença em si,‭ ‬mas‭ ‬que‭ ‬colaboram para adoecermos,‭ ‬como trabalhar demais,‭ ‬não cuidar da saúde,‭ ‬ficar ansioso e estressado.‭ ‭“Com certeza eu mudei porque eu não sou a mesma pessoa que começou esse tratamento,‭ ‬que recebeu esse diagnóstico.‭ ‬Não sou mais a mesma,‭ ‬mas se eu te falar que eu mudei‭ ‬100%,‭ ‬é mentira.‭ ‬Mudaram as minhas crenças,‭ ‬mudaram as minhas certezas,‭ ‬algumas das minhas atitudes.‭”

Conversa com Deus
Em uma internação,‭ ‬sentiu tanta dor que confessa ter chegado a pedir a Deus para morrer.‭ “‬Com dor você não é gente,‭ ‬você não responde‭ ‬por você.‭ ‬(…) ‬Falei,‭ ‬‘chega,‭ ‬eu não aguento mais,‭ ‬pode parar,‭ ‬eu quero morrer.‭ ‬Se alguma coisa não melhorar aqui eu estou pedindo para sair‭’‬.‭ ‬Como se eu pudesse,‭ ‬né‭?”

Aí ela completa:‭ “‬Lógico que eu continuei com dor.‭ ‬Imagina‭ ‬se todos os nossos desejos fossem atendidos a gente estava perdido.‭ ‬Óbvio que não morri,‭ ‬estou aqui.‭ ‬Melhorei,‭ ‬fui internada e tal.‭ ‬Depois você fica pensando,‭ ‬cara,‭ ‬eu tive um pensamento suicida.‭”

Érika diz que não tem medo de morrer e não acredita que a morte‭ ‬é o fim. “Acredito que a gente não está aqui pela primeira vez,‭ ‬e‭ ‬para mim,‭ ‬como li uma vez,‭ ‬morrer é acordar em outro lugar.‭”‬

Crê no espiritismo e tem uma relação muito forte com Deus.‭ “‬Eu fiz um pacto com Deus,‭ ‬eu posso morrer a qualquer momento.‭ ‬Achei que não ia conseguir fazer a quimio porque eu estava muito fraca na época.‭ ‬Eu falei,‭ ‬Cara,‭ ‬me põe de pé que eu vou fazer o que tem que fazer.‭ ‬Aí eu fiquei de pé.‭ ‬Eu nunca pedi para ser curada.‭ ‬Essa doença veio por algum motivo e se eu preciso aprender com ela‭.”

‘O sentido da vida é evoluir‭’
E é dessa forma que ela enxerga a vida.‭ “‬Para mim o sentido da vida é evoluir,‭ ‬usar todas essas ferramentas que a gente tem,‭ ‬de sentimentos,‭ ‬tudo,‭ ‬para aprender,‭ ‬para crescer. A gente tem raiva,‭ ‬sim.‭ ‬Ciúmes,‭ ‬inveja,‭ ‬a gente fica muito bravo.‭ ‬Antes eu achava que o mundo era dividido entre o bem e o mal.‭ ‬Não existe isso,‭ ‬todo mundo‭ ‬é meio mau e meio bom,‭ ‬meio legal e meio chato.‭ ‬Meio neurótico,‭ ‬meio esquisito.‭ ‬Uns mais,‭ ‬outros menos.‭ ‬E como‭ ‬vamos fazer para viver com‭ ‬essas nossas coisas‭?”

Ela diz que a doença a ajudou a olhar um pouco mais ao redor,‭ ‬para o coletivo.‭ “‬Isso para mim foi ótimo.‭ ‬Assim,‭ ‬era só eu,‭ ‬então‭ ‬olhava muito para mim,‭ ‬eu era o ‘umbigão’ do mundo.‭ ‬De certa forma,‭ ‬a doença me fez pensar e me colocar no lugar dos outros‭ (‬…‭)‬.‭ ‬Então,‭ ‬acho que se a gente puder se conhecer e ver como usar esse potencial tão grande que‭ ‬tem para ser melhor,‭ ‬para fazer parte das coisas‭ ‬-‭ ‬porque‭ ‬a‭ ‬gente não é isolado,‭ ‬está tudo‭ ‬integrado,‭ ‬a natureza,‭ ‬o homem,‭ ‬o planeta‭ ‬-‭ ‬isso é bom.‭”‬

Para ela,‭ ‬precisamos parar e pensar mais sobre aonde nossas atitudes estão nos levando.‭ “‬A gente acha que está aqui para ser feliz‭ ‬(…).‭ ‬Eu acho que a gente tem um vislumbre de felicidade aqui na Terra,‭ ‬mas por que mais a gente está aqui‭? ‬’.‭ ‬Nesse processo‭ ‬a gente vai ser feliz,‭ ‬sim,‭ ‬mas a gente vai passar raiva,‭ ‬vai ficar nervosa,‭ ‬vai se estressar,‭ ‬vai amar,‭ ‬vai perdoar,‭ ‬vai entrar em contato com todos os sentimentos‭ ‬que tem e quanto melhor a gente puder usar essas ferramentas‭ ‬a nosso favor,‭ ‬seja‭ ‬para ser feliz sei lá,‭ ‬para não sofrer tanto,‭ ‬para ajudar os outros,‭ ‬para ajudar o planeta,‭ ‬a gente vai evoluir melhor,‭ ‬acho que‭ ‬vamos sofrer menos.‭”

Eu não me permitia chorar‭’
Ela diz que não gosta de se colocar como vítima.‭ “‬Aconteceu isso,‭ ‬então o que tem que fazer‭? ‬Sou muito prática‭ (‬…‭)‬.‭ ‬Descobrir a doença foi uma oportunidade que eu tive de me curar,‭ ‬não só fisicamente,‭ ‬como espiritualmente,‭ ‬mentalmente,‭ ‬para mim foi isso.‭”‬

Conta que teve um pouco de dificuldade no começo em lidar com a reação das pessoas estimulando que ela tivesse força, que‭ ‬não dá para ser forte o tempo inteiro e às vezes quer ser fraca quando precisar.‭ “‬Você vai ser forte quando dá,‭ ‬e também não vai fazer nada além do seu esforço.”

Apesar de tudo, diz que tem a “mania” de querer ser forte e, por isso, achava que não podia chorar. “Eu não me permitia chorar sem nada,‭ ‬sem dor.‭” Um dia,‭ ‬contudo,‭ ‬se‭ ‬olhou no espelho e começou a chorar.‭ “‬Pensei,‭ ‬por que estou chorando‭? ‬Porque eu estou triste.‭ ‬Eu não estou com dor nenhuma,‭ ‬mas eu quero chorar e vou chorar.‭”‬ Nesse dia,‭ ‬além da mãe,‭ ‬estavam na casa dela‭ ‬alguns amigos.‭ “‬Eles me deram um‭ ‬abraço,‭ ‬era o que podiam fazer.‭ Me deixaram quieta e passou.‭”

Também chorou porque não conseguia mais fazer as coisas‭ ‬como antes.‭ “‬Meu ritmo era acelerado.‭ ‬De repente eu tive que parar de fazer tudo o que eu fazia,‭ ‬tudo‭”‬,‭ ‬conta.‭ “Era para eu chorar pela fragilidade,‭ ‬mas não era isso.‭ ‬Eu chorava porque eu queria continuar sendo acelerada,‭ ‬não é o medo da morte,‭ ‬é o medo de perder aquela vida,‭ ‬aquela rotina que você acha que é tão sua e que você não pode viver sem ela.‭ ‬Ai,‭ ‬graças a Deus eu desapeguei‭!‬”

‘Preciso viver’
No dia que conversamos,‭ ‬a Tia tinha acabado de fazer a última das‭ ‬12‭ ‬sessões de quimioterapia e aguardava a próxima etapa do tratamento,‭ ‬que era refazer os exames e ver o andamento da doença.‭ ‬Ela não sabia o que iria acontecer na vida dela dali‭ ‬para a frente.‭ ‬Assim como nenhum de nós sabe o dia de amanhã.‭

‬Perguntei se ela estava ansiosa e ela me disse que o que mais‭ ‬pensava naquele momento era sobre como ia tocar a vida dali em diante.‭ “‬Eu só penso no que eu vou fazer da minha vida.‭ ‬Pode ser que não tenha cura,‭ ‬eu tenho que ter um plano‭ (‬…‭)‬.‭ ‬Eu posso conviver com essa doença e morrer de outra coisa.‭ ‬Então,‭ ‬quais são os planos agora‭? ‬Não posso ficar aqui esperando ver o que vai acontecer também.‭ ‬Preciso viver.‭”

4 comentários

  1. Érika, só tenho a lhe agradecer por ser um ser maravilhoso e especial,amei o seu depoimento e a sua coragem de ser feliz,muitos poucos tem essa capacidade….desejo que se faça valer a vontade DAQUELE SER SUPREMO, QUE NÓS O CHAMAMOS DE DEUS…UM ENORME ABRAÇO.

  2. Criaturas queridas as duas. Mas a Érika é tão chata que eu gosto dela. E prometo que daqui 30 anos quando eu sair de férias de novo vou tacar papel picado nela de novo. Por que é assim que a gente mostra de quem a gente gosta. Bjo pras duas

  3. Texto fantástico, simples, verdadeiro…bem ao estilo “Érika de ser”… Minha linda, todas as melhores vibrações do mundo pra você. Isso vai passar, como tudo nessa vida passa…Beijo grande!

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